Boneca
O sol adormeceu no meu leito. Crescia a densa saudade de voltar a ser nuvem e esvoçar pelo ar ácido da chuva. Na rua perpassavam-se imagens de pessoas ausentes de sentimentos, dementes de sentimentos e ao fundo ouvia-se a luz de um piano. A correria silenciosa dessas janelas de carro molhadas pela chuva... via a calçada cintilar-se de dor numa criança semi-nua, pela sua inocência, levando uma boneca molhada pelo chão. A mãe caminhava erecta num tom franzino quase mecânico e arrastava-a em passos largos obrigando-a a esvoaçar pardaliticamente. Também ela desejava ser nuvem? Também ela se movia nesse esvoaçar... e terá alguma vez o sol adormecido no peito? A boneca molhada ao fundo da calçada. Uma perna a cada lado... as tranças cor-de-rosa a gemerem de água no nevoeiro nú da rua... Segui-a com os olhos estrada fora até a condensar num só ponto... o retrovisor mantinha-a distante e presente nos salpicos de chuva a espelharem pelos vidros...