julho 15, 2006

Véus...

foto: Ronaldo Ramos
As borboletas vagueavam pela casa. Apoderaram-se dela. Sem qualquer outro sentido sobrevoavam o quarto onde restavam retalhos de jornal a cobrir o chão, restos de tintas multicor coladas ao inverso das latas que flutuavam... a sala guardava pedaços de roupa dispersos pelas cadeiras e uma ou outra chávena vazia no tédio... o sol emanava a claridade disforme de as fazer planar úmbrias em três, quatro ou seis rasgos de asa. Eu sentei-me na flor. Macias, as pétalas, exalavam um sabor requintado de perfume fresco acabado de absorver o rectilíneo frescor nocturno. Dei por mim nua. Perguntei ao rapaz da porta se aquela jarra era de cristal e num afago gestual acenou-me que sim. Comprei-a trouxe-a para ali junto das laranjeiras carregadas pelas flores transmutadas em fruto. O pomar esguio, lesto e abafado pelo calor do verão recolhia-me a casa. Nem a água da fonte se tornara límpida com o decorrer de todos os anos. Assustado o varandim pregava-lhe partidas com a sombra ameaçando o compassar do relógio guiado através da lua. Coloquei a jarra em cima da mesa. À noite, quando estou sozinha, as borboletas desaparecem. Só de manhã o mercado, bem cedinho, acorda as vendedeiras de flores. Pego nas latas de tinta e desaparecem. A roupagem, transparente. Perguntei à mais nova das raparigas se aqueles lírios eram puros e sem qualquer gesto, no triunfo pueril de uma virgem murmurou que sim. Peguei em dois atirei-os para a jarra de vidro verdadeiro e falso no cristal e comparei-os à ebriedade das laranjas felizes por nunca darem fruto e vangloriarem-se de flores brancas. O frio a cortar nas entranhas do choupal arrastava-me a casa. Nem o vinho se tornara maduro mesmo passando correntes de tempo para o fortalecer. E dei de caras com o rapaz da porta. Porte robusto, de moço jovem, um aventalinho verde a cingir-lhe a anca. Nunca saíra dali, detrás da montra, nem para ver o pomar, nem o varandim, nem a fonte, nem a mesa onde coloquei a jarra, nem as latas de tinta a colorirem a pureza feminina que me vendera os lírios.

4 comentários:

André disse...

Pétalas soltas ao vento rodopiando em mil cores transmutando-se de novo em flor no odor imutável de uma suave brisa...

Pierrot disse...

Que grande foto.
E que texto tão bonito.
Parabéns
Bjs
Eugénio Rodrigues

Jorge Cardoso disse...

As latas de tinta é que não!
Se deitares as latas de tinta fora, diz-me para onde as deitaste.
Aproveito sempre para as minhas pinturas.
Entretanto a alma gostou do quadro que aqui escreveste com Véus...

Sugcrasis

L. disse...

Bem… mas que véus de leve seda fazes tu descer sobre nós, com a doçura densa e intensa dos teus dizeres…
já tinha saudades deste teu poder criador, cinza… parabéns, pelo post.

, beijo