maio 31, 2006

Em farol - Parte I

Era suposto serem umas três da manhã mas era ainda muito cedo, o relógio não apontava mais do que nove e meia da noite. A ausência, a espera, absorviam-na na sublimática cadência da permanência secreta de memórias embrenhadas em recalcamentos e supressões de memórias que tentava a todo o custo desviar de si mesma para o caixote de lixo, ao lado da secretária. Os jornais falavam-lhe da modesta sensação de se julgarem sabedores de tudo o que se passa no mundo. Não havia música ou qualquer ruído pressente de ser estranho ou pouco usual à janela daquele andar sossegado, onde se perdiam as noites e se ganhavam os dias no sentimento estranho de melancolia que lhe possuía agora os braços. E o telefone já tinha tocado algumas vezes e o gravador de chamadas, limitava-se a guardar as mensagens, como se guardam as caixas vazias de cereais e pacotes de cartão para mais cedo ou mais tarde se colocarem no repositor de reciclagem.

maio 30, 2006

Pirilampos


Dizem que ao nascer do sol me encontrarei contigo...
Dizem...
Não sei até que ponto a verdade me agarrará as mãos..
Trarás no teu colo essa luz, fraca, ténue
Gerada no encantamento de teu próprio seio
E eu agarrei a palavra, escrita nos círculos luminosos
Desenhados por ti à volta dos candeeiros de rua...
Só espero que ao nascer do sol ainda brilhes...
Dizem...
Dizem que me encontrarei contigo...

maio 29, 2006

Lifrep...

fotografia de A. Brito

Recorto-me... dentro do véu inofensivo a cobrir-me os olhos...
Recorto-me e esmago-me na insensibilidade de me decorar
Sei-me...
Insana apareço-me em nocturno vazio de meus seios capilares a gemerem na agonia do eu a pedir tanto esse abominar...
Vomito a dor dentro de mim...
Não sei mais apagá-la...
Engulo-a sem suster a respiração e emudeço...
Travo a laranjeira carcomida por vermes..
Neutralizar-me em esperança desfeita...
Desfazer-me em pedaços mãos espalhados no puzzle por desenhar...
Desconheço esse bem-estar da luz...
Sinto-a a percorrer a aura plena da manhã sandia
Finjo usar a máscara...
Finjo arrancá-la de mim mesma, toda, única
Finjo, de uma vez só, sugá-la de minhas entranhas
Não tenho mais em mim que retalhos...
Recorto-me...
Rendo-me à sofreguidão anterior a mim mesma
Anulo-me em frenética exaustão de decadência
Mariposa em murcho rebento a estilhaçar-se
Fugidia...
Armada de tesouras linha após linha...
Num enfeite
Num percurso consciente dessa ausência
De poder tanto quanto quero: RECORTAR-me

maio 27, 2006

Traços - parte III


Primeiro minha boca serena... sufocava densa dentro da tua... Rasgámos os lencóis de nossos corpos... implorámos ficar um junto do outro enquanto as lágrimas asssomavam uma lagoa de sal e mel à sombra da grande árvore de madeira, onde tantas outras vezes nos abraçávamos. Cinzel esguio vincava meu corpo em sangue... vincava-o em traços de cor e sorriso, a pouco e pouco, bem devagar... O arrepio no fundo das costas... o relógio dentro do copo de água, a flutuar... as ondas das aves a cobrirem-nos de grito e desespero... Tremíamos... Tu voltaste-te para a Alba e mergulhaste suave:
- Vem ter comigo...
Deram as mãos suaves e eu adormeci no espectro lunar, a agudizar a sombra do primeiro raio da manhã...
- É cedo...
E o levitar de meus barcos oníricos afogou meu corpo nos espelhos cansados dessa nudez pura... imobilizando-o no sono meigo.

maio 26, 2006

Aceitar...

Meus lábios aceitam o castigo
Vara meu corpo cansado
Sentem-se os ossos a sair boca fora
Crava-se demente a flor a acudir
a simplicidade de ter-me:
Isolamento absurdo.
Nada mais sou que absurdo
Cansada percorro debaixo do sol
o caminho fátuo sem meu barco
sem meu barco de árvores
a abraçar-me
Meus lábios aceitam o castigo
Levam consigo o fardo de não existirem
enquanto saudade:
São Sombra.
E a Sombra é senão a radiografia
da alma a esbater-se
funda e negra
no Chão!

maio 25, 2006

Não...

No conteúdo da rejeição, absorvo o cimo demente da trepidez incolor de ter-me. Aceito a névoa a sulcar-me o corpo, enterrando-o noite fora... Absorvo densamente o teu "não" a aglutinar-se-me à face. Traços já pré-existentes obrigam-me a aceitar essa pequena negação transmutando-a em abismo amplificado. Sou o eu sem aceitar essa palavrinha decontradição em relação a mim mesma. Contextualizo-a numa infame proporção, elevando-a ao estado maior dessa significância. Perdoar-me a mim mesma se conseguires ver-me nesse perdão...

Somos humanos

Às memórias de um sorriso podemos juntar ícones importados de outros. A lassidão da vida oferece-nos uma oportunidade para jamais descansar dentro do templo de quem não sabemos conquistar a ranhura do tempo a esfiar-se pelo nó que tentamos enredar pelos dedos. Não nos sufoquemos de impedir o século da transparência bem-amada. Ficaremos no silêncio das trevas a julgar o impossível dentro do tédio. Não faremos mais que julgá-lo perante o tédio. Ao acordar diremos uma só palavra e essa palavra será uníssona mediante o entardecer. Se for larga, a noite encostar-se-à ao nosso ombro. Se for densa mergulharemos na penumbra multicor. Melhor será nem sequer pensar em nada, antes sucumbir todo o universo num parâmetro disforme. Medir os caminhos e a distância, observar os pássaros e as folhas das árvores a sorrir ao vento... Melhor será nem sequer motivar distâncias. As distâncias limitam-se a si próprias, a si próprias são limitadas as distâncias. Transparece redundância? Não existe redundância. Eis um termo inventado para nos desculparmos da repetição dos erros.

maio 22, 2006

Antes de partir...

Trago-te as palavras, e este cigarro que fumaremos os dois... e do mar recolhi esta coroa de rubras escamas e o silêncio dos náufragos... uma concha, um punhado de sal e a moeda de ouro que te enterro na boca antes de prosseguires viagem.
Al Berto
Canto do Amigo Morto

maio 19, 2006

Saudade...



Como dizer-te isto sem ter sol?
Como dizer-te isto numa palavra?
Odiar os longos dias da noite vazia?
Odiar as sombras da luz?
Como dizer isto sem mostrar
As raízes que vais criando em mim?

maio 18, 2006

Silêncio...

Um banco de esperas...
um barco em horizontes de jardins...
a luz das vozes que se cruzam
e murmuram entre si um nada,
um tudo...
Uma solidão preenchida nesse diálogo mudo

maio 16, 2006

Sexo fraco... incapaz de dar à luz poesia

"Se eu fosse mulher - na mulher os fenomenos histéricos irrompem em ataques e cousas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia..."
Fernando Pessoa
in Carta a Adolfo Casais Monteiro
sobre a génese dos Heterónimos

Creio que Lispector lhe murmura lá nos céus: "Perdão é um atributo da matéria viva".

maio 07, 2006

Garraiada...


Confesso que ficámos na dúvida: Ir até à praça de touros ou beber umas abadias? Tourada nunca foi o meu forte, mas um sorriso miudinho surgiu em mim quando o touro saltou a arena, depois de tanta estudantada gritar: "E salta touro, e salta touro, olé!!"

maio 02, 2006

A

Tinha um caractere estranho junto ao sorriso inerte de seu olhar. Duas letras perplexas a amontoar as flechas da dor incontida flamejando desejo... Pedi-te, de mansinho, que te deixasses ir até ao recanto da luz ausente... mas na ausência perdeste-te da luminescência... fugacidade em voz marítima a reclamar essa ambição névoa, esse revoar gráfico, misto de peças mútuas a entrelaçaremos dedos...
Baba de aranha tecendo a ofuscante gosma fazendo-me prisioneira a ti...